14 novembro 2005

Amanhã...

Amanhã vai ser um dia diferente dos outros apenas porque vai ser igual... tirando uma visita a um edificio que embora novo e onde não tenha passado muito tempo, me faz lembrar, pela sua carga, pelas pessoas, o aqui que passei noutro bem mais velhinho, mas com o mesmo ambiente...

Agora está diferente, está maior, as paredes estão mais espaçadas umas das outras, as cores estão mais vivas, mas será que é assim tão diferente? Não me parece... pelo menos para mim... continua a dar-me aquele calor que me dava quando entrava no outro, continuo a não me sentir bem naquela sala de espera... sei que o meu coração vai continuar a bater como no primeiro dia... é apenas um edificio, mas... não é apenas um edificio! As caras não as conheço, com excepção daquelas que têm uma bata branca anexada, sempre entrei quase de olhos fechados, as pessoas falavam-me eu respondia, mas nunca decorei as caras... decorei duas! Uma delas despediu-se de mim de uma maneira tão subtil que só repararia quando soube... como será saber que é a última vez que falamos com uma pessoa? Na altura não lhe detectei nada! Continuava simpático como sempre foi para mim, nesse dia já não distribuía a propaganda médica, nesse dia já sabia que iria entrar para as estatisticas, e no entanto teve uma conversa comigo, o Valium que tomava todas as manhãs e que quase me apagava, não me fez efeito enquanto conversava com ele... conversar era maneira de dizer... acho que quase nem falei... se fosse hoje se calhar tinha dito qualquer coisa.... A outra cara vi-a ficar cada vez mais velha, cada vez mais fraca... eu saí... ele ainda ficou... de cada vez que lá voltava, mensalmente, perguntava por ele aos meus "anjos de branco" à medida que o tempo ia passando a resposta ia sendo cada vez mais vaga... até que deixei de perguntar com medo da resposta, soube mais tarde pela minha mãe que se confirmava...

Não me recordo se foi no ano passado ou à dois anos, no Natal, telefonaram para casa, uma senhora, queria falar com a minha mãe só que ela não estava, ela identificou-se como sendo aquela senhora que ia com o marido à quimio, lembrei-me! Era uma senhora (não me recordo da cara, nem tão pouco do marido...) que uma vez me tinha dado um amêndoa gemea, duas amêndoas unidas pela casca, que segundo ela dava sorte... ainda a tenho! Queria desejar um feliz Natal, quando se percebeu que era eu, fez-me uma festa (e eu que nem sequer me consigo lembrar da cara...) como a reconheci perguntei pelo marido, perguntei se estava tudo bem... a resposta do outro lado foi firme, são coisas que acontecem, "mas não vai acontecer contigo de certeza! Vejo que estás bom! Agora é seguir com a vida!" ... (o que é que eu digo???), "tenho muita pena",...

Sempre lá entrei de cara levantada, por vezes até sorria! Todos os dias levava o meu beijinho na careca da dona Manuela (uma mulher que parecia ligada à electricidade), carregando o soro que me acompanhava dia e noite durante as semanas de internamento, dizia bom dia aos presentes... e não me lembro das caras... No último dia, se calhar por ser o último, não conseguia estar quieto, o Valium de nada serviu, estava impaciente como um miúdo pequeno à espera do seu brinquedo, pela primeira vez tive de fazer deitado, numa maca, chamava as enfermeiras de cada vez que via que os quimicos estavam a chegar ao fim do "pacote", "Mudem depressa!!", no último "pacote" já não conseguia fazer nada, só chorava... chorava... chorava, estava quase!... "Acabou!",... não conseguia dizer nada! Apenas chorava... os meus "anjos" abraçaram-me, a auxiliar, os meus pais, a minha namorada... não conseguia dizer nada... chorava...!!!! Tinha acabado.... tinha finalmente acabado a sequência de tratamentos que tantas vezes quis abandonar (obrigado "insónias")... Tinha chegado ao fim, apenas restava o meu gânglio de estimação que se mantinha sempre do mesmo tamanho, provavelmente morto, tinha acabado, tinha chegado ao fim... tinha?

Nesse dia e nos seguintes parecia ter acabado, até ter de fazer os primeiros exames de acompanhamento... Nos dias que antecedem os exames de rotina, volta aquele sentimento de entrar no Hospital, durante os dias que passam desde os exames até à consulta, parece que carrego o soro comigo, parece que me sento novamente naqueles cadeirões... no fim de cada consulta, volta a sensação de alívio, ACABOU!... até aos próximos exames...

Amanhã vai ser um dia igual aos outros, terá acabado? Acredito que sim... acredito que amanhã acabe novamente....

4 comentários:

saltapocinhas disse...

fiquei bastante impressionada com o teu relato. andei a ver o blog mais lá para baixo para tentar descobrir se isto era realidade ou ficção, mas o sono não me deixa ler mais... Que o teu "amanhã" que já é hoje, te traga tudo de bom e que, tal como desejas tudo tenha mesmo acabado!

Farpas disse...

Obrigado salpocinhas! O "amanhã" vai ser agora... até logo.

Anónimo disse...

Vinha desejar-te também um bom amanhã, Farpas, quando vi a tua resposta à Saltapocinhas (adoro ver dois "bloggers comentadores do meu" a encontrarem-se noutro lado...é divertido, parece que passei o Pópulo para aqui!)
Claro que tenho a certeza que vais chegar muito aliviado, como disse a senhora nessa bela frase :«Agora é seguir com a vida!»
Mas estes teus textos ( isto não é um post, pois não?) são excelentes e, se calhar, ajudam um pouco a libertar-te.
Um abraço Farpas!

Farpas disse...

Obrigado! Sim ML, estes textos não são para ninguém... são para MIM! Mas acho que vou continuar a escrever as minhas "memórias" desta jornada, porque até pode ser que alguém que esteja a passar por algo parecido possa encontrar alguma coisa que possa ajudar...

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